Estou preparando um material de leitura e interpretação literária direcionado ao público infanto-juvenil. Para completar uma lacuna no material, senti a necessidade de escrever um breve conto (uma fábula, quem sabe?) a respeito da virtude da paciência. Não sei se o texto surtirá o efeito pretendido. Quem puder, leia com jovens de 10 a 14 anos e comente depois o que eles acharam :)
Ah, as imagens que surgirão ao longo do texto foram geradas por inteligência artificial, por isso algumas patas possuem vários dedos e outras bizarrices.
Vivia, num grande rio da Ásia, um velho crocodilo. Sua couraça era dura e cheia de lodo entre as escamas, o papo mole balançava de um lado para o outro, as patas alargavam-se gordas como pernas de elefante. A cabeça esbranquiçada e os olhos caídos e calmos denunciavam a idade do crocodilo. Não se sabe ao certo quantos anos viveu, mas ele recordava-se dos tempos em que Gengis Khan aterrorizava os reinos liderando o exército mongol, Marco Polo e sua caravana visitavam a China e Alexandre, o Grande, perseguia o imperador da Pérsia vorazmente.
O fato é que ele havia sido um jovem crocodilo muito sagaz. Era implacável na caça. Comia gazelas, gnus, antílopes, kudus, avestruzes e cobras. Certa vez (são só boatos) papou uma girafa, um jovem hipopótamo e um homem adulto na mesma semana. Ficou conhecido por todo o continente como o maior caçador das águas. Quando estava com muita fome até mesmo os outros crocodilos saíam de perto.
Comeu tanto que ficou gordo. Agora, já idoso, tinha dificuldades para caçar. Os ossos e as juntas doíam, o bucho arrastava-se pelo chão e o rabo tornou-se tão grande que mais parecia um tronco de baobá. Apesar do estoque que guardava nas banhas, começou a ficar com fome. Não pegava nem uma andorinha há mais de mês. Sempre que chegava perto de qualquer bicho, era facilmente visto. Lento como só ele, qualquer presa rapidamente metia o pé.
“É meu fim”, pensou. “Foram-se os tempos de bonança. Resta-me aguardar a morte”. Aproveitando que ainda tinha forças para caminhar, foi até a beira do rio para o seu banho de sol matinal. Distraído, conjecturava a respeito de seus últimos momentos, recordando seu passado, as grandes glórias que vivera, os animais que caçara e os rios que desbravara. Enquanto isso, apontou na outra margem um antílope.
“Tentarei mais uma vez. Deslizarei vagarosamente pelo rio e tentarei abocanhar o distraído do outro lado”. Assim o fez. Foi devagarinho, sem pressa, cuidando para não balançar muito as pelancas e agitar as águas. Aproximou-se, viu só o focinho do bicho submerso matando a sede. De repente, o antílope olhou para o lado, deu um pinote e foi em disparada. Não se assustou com o crocodilo, mas com outra coisa.
O velho crocodilo pôs os olhos cobertos pela penugem da sobrancelha branca para fora da água. À beira do rio chorava um jovem tigre, lamentando-se.
– Mais um que me escapou! Meu Deus, quando vou conseguir comer novamente?
Percebendo a oportunidade, o crocodilo saiu da água aos poucos, chegando perto, mais perto e mais perto do tigre chorão, até que o felino virou-se rapidamente ao perceber a presença pesada do réptil.
– Quem é você? Afaste-se de mim! – armou-se em posição de ataque, nervoso, os olhos vermelhos de tanto chorar.
– Acalme-se, meu jovem. Estou aqui para lhe ajudar – o crocodilo falava com voz mansa.
– Você, pelo que sei, é um crocodilo. Somos inimigos, foi isso que minha mãe me disse. Saia daqui se não vou lhe atacar! – com medo, o tigre eriçou os pelos e recolheu-se pronto para fugir.
– Não temas. Seríamos inimigos em outros tempos – o crocodilo aproximava-se com calma e fazia de tudo para não mostrar os seus mil dentes – porém estou velho e cansado. Cheguei a ser grande caçador, mas hoje vivo meus últimos dias.
– E o que eu tenho a ver com isso?
– Mesmo à beira da invalidez, tenho bons ouvidos. Sua barriga está roncando. Tentou abocanhar o antílope e não conseguiu. Imagino que não coma há um bom tempo, não é?
– Desde que me perdi dos meus pais.
– Oh, que triste. Meus sinceros sentimentos. – disse o velho crocodilo, sorrindo com malícia, o que assustou o jovem tigre. – Imagino que eles não tiveram tempo de ensinar-lhe a arte da caça.
– Não…
– Bom, tudo o que eu mais quero nesses momentos finais da minha vida é deixar um legado. Quer ser o meu aprendiz? Desejo transmitir-lhe todo o meu conhecimento de predador.
O jovem tigre torceu o rosto e apertou os olhos, desconfiado.
– E o que você quer em troca?
– Bem, eu não iria pedir nada, mas já que você perguntou… Quando você conseguir caçar, é só fornecer um pedacinho da sua caça a esse velho crocodilo cansado.
– Só isso? – respondeu o tigre, surpreso.
– Só, claro. O que mais eu poderia querer?
O tigre, enxugando as lágrimas, aceitou a proposta. Mas retrucou:
– Tenho somente uma condição. Você não vai chegar perto de mim enquanto isso. Ainda não confio em você.
– Aceito sua condição, meu jovem. Mas já lhe adianto que pode guardar sua desconfiança. Nem se eu quisesse poderia fazer-lhe mal.
O crocodilo começou o treinamento. Pediu, primeiro, que o tigre tentasse predar por si só um animal qualquer. Tentou, inicialmente, capturar um javali. Saiu do meio da grama alta e arremessou-se nas costas do bicho. Porém, um momento antes de cravar suas garras, o porco escapuliu desaparecendo na mata densa.
– Você é barulhento demais, meu jovem - disse o crocodilo, que observava de longe, lambendo os beiços – Isso assusta seu almoço. Respire mais devagar, tenha movimentos lentos, cuidado ao pisar em galhos caídos e roçar na relva.
O jovem tigre seguiu os conselhos e tentou novamente. Viu um pequeno búfalo perdido desgarrando-se da sua manada, que já subia o rio enquanto o pequeno distraía-se com uma borboleta. O tigre precipitou-se da copa de uma árvore, mas não tão alto para alcançar o pequeno búfalo, que gritou. Em poucos segundos cinco búfalos grandes uniram-se contra o tigre, que escafedeu-se rapidamente, passando por debaixo do torso de um dos búfalos, fugindo como um peixe escorregadio.
– Você é apressado demais, meu jovem – aconselhou o crocodilo, quando o jovem tigre veio lhe contar o que houve, esbaforido – É preciso controlar o ímpeto e ter, principalmente, paciência. A sua presa deve chegar a você. Basta esperar o momento certo.
O tigre tentou mais uma vez, e mais uma, e mais uma. Empreendeu sua caçada durante três dias ininterruptos. Já estava exausto, faminto, a barriga doendo, as pernas bambas. Os conselhos eram sempre os mesmos: tenha calma, seja lento, paciente, astuto, sagaz, não faça barulho, só dê um bote certeiro na hora correta, não se precipite… etc, etc, etc. O tigre já estava de saco cheio dos conselhos do crocodilo.
– Não estão funcionando! São conselhos inúteis. Tento há dias e não consegui nem um mísero pássaro. Estou matando minha fome com insetos e cogumelos.
– Meu jovem, acalme-se.
– Não aguento mais ter calma!
– Você nunca a teve. Há um provérbio indiano, o qual ouvi há muito tempo, que diz o seguinte: sente-se à margem do rio e verás o corpo do teu inimigo passar. Na verdade, esse era um provérbio crocodilesco que nós ensinamos aos homens no tempo em que eles ainda se comunicavam conosco. Se você não fizer o que eu estou pedindo, morrerá de fome antes de mim.
Enquanto discutiam, surgiu do outro lado, novamente, o mesmo antílope que os animais disputaram dias atrás.
– É a sua chance, meu jovem. Vá por dentro do rio, com calma, nadando vagarosamente. – apontou para uma grande casca de árvore caída ao lado deles – Cubra-se com isso, utilize-o como disfarce. Chegue perto sem barulho nem agitar a água. Quando estiver ao lado do bicho e ele não estiver desconfiado da sua presença, dê um bote certeiro no seu pescoço e traga-o até mim.
Assim o fez. Controlou o nervosismo, diminuiu o ritmo da respiração, mergulhou lentamente e seguiu coberto pela casca da árvore. Nadou não como um tigre, mas como um legítimo aprendiz de crocodilo ancião pronto a abater sua caça. O antílope, inocente, bebia e bebia e bebia toda a água, ficando cansado e lento. Olhou para o objeto que se aproximava, porém não viu perigo e voltou a beber com afinco e muita sede. Era a oportunidade perfeita. Numa investida precisa, o jovem tigre cravou os dentes ferozes no pescoço do antílope que se debateu, mas logo desistiu. O tigre havia vencido.
Atravessou o rio até a margem onde o crocodilo observava calado e quieto o alegre tigre carregando sua caça entre as presas.
– Consegui! – gritou, soltando o almoço no chão.
– Parabéns, meu jovem. Foi paciente e inteligente. Mereceu a recompensa.
– Você também merece a sua. Vamos comer.
Empolgado, o tigre esqueceu-se da sua condição deixando o crocodilo aproximar-se. O jovem matava sua fome lambuzando-se no seu banquete, distraído, quando ouviu a voz do crocodilo ao seu lado.
– Você aprendeu a lição da paciência, meu jovem.
– Obrigado, crocodilo.
– Mas lembre-se: sempre pode haver alguém mais paciente do que você. Quem espera mais, vence.
– Como assim? – o tigre parou de comer e virou o rosto para o crocodilo, curioso.
De repente, o crocodilo abriu a gigantesca boca, expondo todos os dentes assustadores feito lâminas brilhantes, e partiu para cima do tigre. O jovem, transido de medo, fugiu, zunindo como uma flecha. Depois de finalizado o seu plano, o crocodilo arrastou a carcaça do antílope para dentro do rio calmamente.
Dizem que até os dias de hoje ele pode ser visto nos rios da Ásia, cada vez mais velho e gordo.
A ideia de ganhar pelo conhecimento foi algo muito justo! Achei também que, pela dinâmica, o crocodilo adotaria o tigre ou, ao menos, era essa a minha esperança. Por isso que só consigo ver toda criança achando o Sr. crocodilo-baobá um babaca. Kkkk
Muito Bom Matheus...vou compartilhar com meus alunos ...